Agosto Lilás e o crescimento da violência contra a mulher

, ,

por Rafael Silva*

Pouco conhecida do grande público, a Campanha Agosto Lilás chama atenção contra a violência doméstica, destacando histórias e feitos de mulheres pelo Brasil e suas respectivas conquistas. Agosto foi escolhido por ter sido o mês, em 2006, da sanção da Lei Maria da Penha, um marco na proteção dos direitos das mulheres no Brasil. A campanha conta com eventos e palestras que abordam questões de gênero, direitos e relacionamentos saudáveis, unindo sociedade e órgãos governamentais na busca por mudança. Mais do que sensibilizar, a proposta é oferecer recursos e criar uma rede de apoio vital, inspirando ações para construir um futuro sem violência doméstica.

TRE de Roraima

Poucos dias antes do lançamento da campanha deste ano foram publicados os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Infelizmente, os números referentes à violência contra a mulher e doméstica pioraram em comparação a 2021, assim como aqueles relacionados a crianças e adolescentes – em sua maioria meninas.

E, quando observamos esses dados sob o recorte racial, identificamos que, proporcionalmente, as mulheres pretas são maioria. Além disso, ao contrário do que acontece entre as brancas, a violência contra mulheres pretas e as indígenas segue crescendo.

Isso se explica pelo fato de mulheres indígenas e pretas, além do fator de gênero, acumulam questões sociais. Muitas residem em áreas periféricas e com baixo índice de autonomia financeira, o que, em certas ocasiões, deixam as vítimas à mercê de seus agressores. Em outros casos, a falta de conscientização e a própria naturalização da violência levam essas mulheres a se manter em relações marcadas por abusos e agressões. Por fim, quando procuram uma delegacia, constantemente são descredibilizadas e desencorajadas a denunciar ou mesmo culpabilizadas pelo fato ocorrido.

Destrinchamos esses e outros dados relacionados ao tema e levantamos hipóteses que explicam a piora dos números.

Feminicídio e homicídio feminino

Em 2022, os homicídios femininos mostraram crescimento, chegando a 4.034 vítimas. Desses, 35,6% foram classificados como feminicídios – quando o gênero é a motivação do crime –, com um crescimento de 6.1% na comparação com o ano anterior.

Sete em cada dez casos de feminicídio ocorreram dentro de casa, sendo que  53,6% dos assassinatos foram cometidos por parceiros íntimos, 19,4% por ex-parceiros íntimos e 10,7% por familiares. O perfil etário predominante das vítimas foi de entre 18 e 44 anos. O levantamento registrou ainda aumento de 16,9% nas tentativas de feminicídio.

Pesquisa recente constatou que, na maior parte dos casos de feminicídios, filhos, familiares ou amigos das vítimas já haviam presenciado agressões. Por outro lado, a maior parte dessas pessoas ainda não haviam buscado ajuda das autoridades policiais, o que demonstra que a violência contra a mulher ainda é subnotificada e, em muitos casos, poderia ter sido evitada.

Ao olhar o perfil racial, mulheres pretas são maioria entre as vítimas de homicídio (68,9%) e feminicídio (61,1%).

Anuário Brasileiro de Segurança Pública – Infográfico
Seja Confluente

Estupro

No Brasil, os crimes de estupro e estupro de vulnerável são distintos legalmente. O estupro envolve a violência sexual contra alguém sem seu consentimento, independentemente da idade, enquanto o estupro de vulnerável abrange situações em que a vítima é menor de 14 anos ou possui alguma condição que a impeça de compreender o ato ou resistir a ele.

Em 2022 o Brasil registrou uma média de 205 estupros por dia, um infeliz recorde histórico. A maior parte desses casos são classificados como estupro de vulnerável e ocorreu durante o dia — o inverso do que acontece com os índices de estupros, onde a maioria se deu durante noite ou madrugada.

No geral, a maioria das vítimas é mulher, menor de 18 anos e preta. Pessoas conhecidas da família foram o perfil mais comum dos abusadores, sendo que apenas 17,3% eram desconhecidos.

Anuário Brasileiro de Segurança Pública – Infográfico
Folha de S.Paulo

Lesão corporal dolosa e/ou violência doméstica

Os casos de agressões domésticas tiveram um aumento de 2,9%, enquanto as ameaças e os chamados ao 190 subiram, respectivamente, 7.2% e 8.7% entre 2021 e 2022.

Anuário Brasileiro de Segurança Pública – Infográfico

Assédio e importunação sexual

O assédio sexual ocorre a partir de comportamentos de caráter sexual não consentido envolvendo um agressor que usa de sua posição de superior hierárquico em um emprego ou função para ameaçar a vítima. Diferentemente do assédio, na importunação sexual não importa se há uma relação hierárquica ou de subordinação entre quem comete o delito e a vítima.

Ambos os crimes registraram significativos aumentos: 49,7% para os casos de assédio e 37% para os de importunação sexual.

Anuário Brasileiro de Segurança Pública – Infográfico

Perseguição (stalking) e violência psicológica

Tanto o stalking quanto a violência psicológica passaram a ser considerados crimes a partir de 2021. A lei considera stalking como o ato de perseguir alguém, por qualquer meio, ameaçando a integridade física ou psicológica dessa pessoa. Já a violência psicológica ocorre quando há dano emocional à mulher por meio de “ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização ou limitação do direito de ir e vir”.

Ambos registraram crescimento expressivo, sendo o stalking o crime que teve maior aumento anual comparativo, registrando 74,2% mais ocorrências que em 2021. Por sua vez, os casos de violência psicológica tiveram um aumento de 32%.

Vale registrar o aumento da concessão de medidas protetivas de urgência, assim como o percentual de 85% dessas solicitações atendidas. É de se supor, portanto, que ainda há obstáculos no acesso à justiça das mulheres que buscam socorro no Judiciário, já que nem todos os pedidos, mesmo com os relatos das vítimas, são atendidos.

Anuário Brasileiro de Segurança Pública – Infográfico

Infelizmente, com exceção dos registros de feminicídio e estupro, o Anuário não conseguiu fazer o levantamento por perfil de gênero e racial das vítimas dos crimes acima. No entanto, segundo especialistas e diferentes estudos, mulheres pretas são a maioria das vítimas desses tipos de caso.

Por que cresceu? 

Entre as causas para o crescimento da violência contra a mulher, a coordenadora institucional do Fórum de Segurança Pública, Juliana Martins, cita a pandemia de Covid-19 como elemento que ainda influencia as estatísticas. Um exemplo prático disso são as casas de acolhimento: parte desses espaços deixaram de receber novas acolhidas e outros chegaram a fechar devido a escassez de recursos e realocação orçamentárias.

Outro fator relacionado à pandemia pode ser observado a partir do aumento dos casos de estupro. Como esse crescimento foi puxado pelo estupro de vulneráveis, por um lado o fechamento de escolas aumentou o período no qual essas meninas passaram em casa e, portanto, estiveram vulneráveis a violência. Por outro, impediu que os profissionais escolares observassem eventuais mudanças de comportamento: é muito comum que parte significativa das denúncias partam dos próprios professores.

Ainda de acordo com a pesquisadora, o crescimento de movimentos que combatem questões de gênero e a queda, em 2022, do financiamento do governo federal às políticas de enfrentamento à violência contra a mulher são outras causas explicativas.

Segundo Samira Bueno, diretora executiva do Fórum, o aumento pode ter ocorrido devido ao crescimento da conscientização e empoderamento das vítimas, na esteira de ações como o movimento Metoo. Dado o grau pedagógico dessas campanhas, muitas mulheres passam a entender que foram vítimas de abusos e violência a partir delas.

Como mudar esse cenário? 

Iniciativas governamentais são de primordial importância para combater em escala regional e nacional o problema, mas a sociedade civil organizada também pode e deve atuar para promover a melhora dessa situação.

Entre as estratégias e possíveis ações, é preciso garantir segurança física e psicológica às vítimas, desenvolver o empoderamento econômico, social e político de figuras femininas, apoiar programas, estudos e estratégias que fortaleçam conceitos de igualdade de gênero e abordagens sobre as causas da violência. Por fim, aumentar o financiamento, dar espaço e apoio a projetos que promovam o direito das mulheres é fundamental.

Nesse sentido, em 2022, a organização Odara – Instituto da Mulher Negra, que fortalece a autonomia de mulheres pretas, foi apoiada pelo Confluentes. Já este ano, o Instituto Igarapé, que trabalha com governos e entidades da sociedade civil produzindo estudos e apontando soluções para melhorar os índices gerais da segurança pública no Brasil, e o Fundo Agbara, que promove acesso a direitos econômicos viabilizando a independência financeira e emocional de mulheres pretas, recebem nosso apoio.

Rafael Silva é professor, graduado em História e Geografia e mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio e confluente.

Seja Confluente

Últimos posts