Raça e gênero no futebol feminino brasileiro

por Rafael Silva*

Em meio à efervescência do futebol feminino, o Brasil se prepara para a 9ª edição da Copa do Mundo da categoria, um evento que promete ser histórico. Com premiação recorde e a participação inédita de 32 seleções, o torneio se torna um marco na luta pela igualdade de gênero no esporte.

O futebol feminino brasileiro tem conquistado cada vez mais espaço e visibilidade graças ao talento e à militância de jogadoras como Marta, Pretinha e Formiga. Foi a partir da pressão exercida por essas atletas e por uma parcela expressiva da opinião pública que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) equiparou as diárias salariais e as bonificações da equipe feminina às do time masculino.

No entanto, apesar desse avanço significativo, persistem desigualdades históricas que se tornam evidentes quando se compara o futebol feminino ao masculino. Para entender essas disparidades, é necessário analisar as questões estruturais de gênero e raça que permeiam o passado e o presente do esporte no país.

Pontapé inicial

A história oficial costuma datar de 1894 a primeira partida de futebol no Brasil. Nesse contexto, o esporte era praticado por uma pequena elite, que via nele um modismo europeu a ser copiado. Nas primeiras décadas, a sua versão feminina teve características semelhantes: jovens de famílias abastadas formavam equipes mistas e alguns amistosos experimentais.

Em 1921, na capital paulista, organizou-se um jogo feminino e a cobertura da imprensa deu o tom sexista que a prática era vista por alguns. Descrito como “cômico” e “curioso” pelo jornal A Gazeta, nos ajuda a entender por que, nesta década, a prática ficou mais associada ao circo, em uma espécie de show e entretenimento masculino. Nele, as jogadoras desfilavam com shorts curtos e forte maquiagem, uma prática exclusiva de mulheres brancas, atendendo ao padrão de beleza eurocêntrico.

Bailarinas do Circo Irmãos Queirolo, década de 1930

Longe dos circos e entre as classes baixas do subúrbio carioca, surgiram oficialmente as primeiras equipes femininas, segundo mostrou Aira Bonfim em sua dissertação de mestrado. Nos “festivais esportivos” que circulavam pela região, era possível acompanhar times e toda uma organização esportiva de mulheres periféricas, atletas pretas e brancas jogando lado a lado, com saias e mangas longas.

A Noite Ilustrada, Rio de Janeiro, 1931
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Do golaço ao cartão vermelho

No fim dos anos 1930, o subúrbio carioca já contava com 15 times femininos, fato que chamava a atenção da imprensa local.

Súmula presente nas páginas do Jornal dos Sports para receber a sugestão de escores das partidas indicadas, 1940

Em 1940, autoridades paulistas convidaram os times do Casino Realengo FC e o SC Brasileiro para um jogo preliminar no recém-inaugurado Estádio do Pacaembu – principal praça esportiva da época.

Jornal Correio Paulistano (SP), 1940

O amistoso, porém, desencadeou uma série de críticas de setores conservadores contra a prática feminina no esporte. Colunas pejorativas em jornais paulistas criticaram o desempenho feminino em campo, um padre do interior chegou a excomungar as jogadoras e autoridades do Ministério da Educação usaram argumentos pretensamente científicos para afirmar que o futebol não era feito para mulheres.

Jornal O Imparcial, 1941

Os estereótipos de gênero ficam evidentes. Em uma sociedade marcada por padrões sexistas, o futebol contrariava a imagem de fragilidade e preservação do corpo feminino. Além disso, erroneamente, popularizou-se a crença que tornaria as jogadoras inférteis. Por fim, soma-se o fato que treinamentos e viagens afastavam jogadoras do cuidado da casa, função socialmente atribuída às mulheres.

Não surpreende, portanto, que em 1941 “práticas que não fossem adequadas à natureza feminina” fossem proibidas pela Confederação Nacional de Desportos (CND) e, em 1965, uma nova lei citava especificamente a proibição do futebol.

Mesmo proibido, há registros em 1959 e 1960 de partidas de mulheres. Jogadas por “atrizes” e “vedetes” embranquecidas usando shorts curtos, com objetivo de atrair o público masculino, o futebol feminino mais uma vez foi apresentado como espetáculo estético, com claro teor sexista e racista.

Ingresso do jogo beneficente realizado em 17 de agosto de 1959 no estádio do Pacaembu. Ao lado, vedetes paulistas perfiladas em matéria para a Revista Careta

Há também registros de partidas femininas envolvendo o clube Araguari, de Minas Gerais, em 1958, mas que teve vida breve – provavelmente por pressão da CBD. Nos anos 1970, como ficou conhecido a partir do podcast História Preta – Ep. Clarice, foi formado um time de empregadas domésticas em Jaú, interior de SP.

Time do sindicato de empregadas domésticas de Jaú, anos 70

Fim da proibição e antigos problemas

Em 1979, a proibição foi revogada e em 1983 a modalidade passou a ser regulamentada. Apesar da legalização, alguns problemas persistem. Além dos já conhecidos – falta de estímulo de federações, clubes e parte da imprensa –, estereótipos de gênero ainda atingem às atletas.

Em 2001, a Federação Paulista de Futebol criou a “jogadora objeto”. Nesse modelo, as atletas deveriam ter “longos rabos-de-cavalo”, shorts curtos e usar maquiagem para garantir o “sucesso do torneio” e “atrair o público masculino”.

Em 2015, o coordenador da seleção feminina da CBF, Marco Aurélio Cunha, afirmou ao jornal canadense The Globe and Mail que o futebol feminino do Brasil chamaria mais a atenção uma vez que “as jogadoras estavam mais bonitas e usando maquiagem”.

Mesmo sem grande infraestrutura e apoio, quando não conquistam os primeiros lugares, as atletas são taxadas como derrotadas e comparadas negativamente aos homens.

Folha de S.Paulo, 2011

Muitas matérias jornalísticas, mesmo promovendo a prática e as jogadoras, ainda tematizam o futebol feminino com pautas relacionadas a rotina de beleza e cuidados estéticos das atletas, reforçando, mais uma vez, estereótipos e um padrão de comportamento esperado por elas.

Em pesquisa recente, 20% das atletas afirmam que o xingamento mais comum nos estádios é o “sapatão”, seguido de ofensas relacionadas a raça. Isso nos faz refletir que, 40 anos depois da regulamentação, o futebol ainda é associado a uma prática masculina e quando as jogadoras não assumem o perfil estético padrão, sofrem preconceitos de gênero, sexualidade e, no caso das jogadoras pretas, racismo.

Atravessadas por estereótipos de gênero e raça, jogadoras pretas relatam o crescente número de casos de racismo em campeonatos. Além desses preconceitos, elas sofrem questões de classe. Com a melhoria das condições, diminuição do estigma, o acesso de diferentes classes sociais e aumento da cobertura esportiva, há um acirramento das disputas que tem contribuído para um embranquecimento da seleção brasileira, segundo a jornalista e especialista em seleção feminina Luciene de Castro.

No sentido horário: Equipes femininas das Olimpíadas de 1996 (Foto AP), Copa do Mundo de 2007 (Foto CBF), Olimpíadas de 2016 (Foto CBF) e Copa do Mundo de 2019 (Foto CBF)

Prorrogação

Desde a Copa do Mundo de 2019, a principal emissora de TV brasileira transmite os jogos da seleção feminina em TV aberta e boa parte dos jogos em seu canal fechado. Também será possível assistir todas as partidas da competição através do YouTube, a plataforma informou que vendeu todas as cotas de patrocínio para o torneio.

Algumas empresas divulgaram que irão liberar funcionários para ver os jogos da seleção em casa, além de permitir a entrada após os jogos. O governo federal decretou ponto facultativo para os funcionários federais.

Todos esses fatos somam-se ao aumento da presença de mulheres em transmissões televisivas e na arbitragem brasileira, assim como no consumo. Segundo dados recentes, as brasileiras já representam 49% daqueles que acompanham o esporte. Mesmo assim, uma análise feita a partir de social listening identificou que nas redes sociais o público feminino constantemente precisa refutar comentários machistas, além de responder perguntas sobre se entendem ou não o esporte.

Por isso, é preciso seguir empoderando mulheres no esporte e onde mais elas queiram estar. Acompanhar o futebol feminino é imprescindível para seguirmos avançando em busca de equidade de gênero.

Dia 24, às 8 da manhã, a seleção brasileira inicia mais uma Copa do Mundo e temos mais uma vez a chance de mostrar que somos a “pátria de chuteiras” também das mulheres.

Apito final.

Rafael Silva é professor, graduado em História e Geografia e mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio e confluente.

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