Entrevista com Naiara Leite, do Instituto Odara

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“O que me faz acordar todos os dias é o amor pelas mulheres negras”               

Naiara Leite é coordenadora executiva do Odara – Instituto da Mulher Negra, organização que, apoiada pelo Confluentes, está centrado no legado africano e voltado para o fortalecimento e a autonomia das mulheres negras. Fundado em Salvador, Bahia, em 2010, o Odara trabalha em defesa da equidade racial com recorte de gênero em busca da ampliação da autonomia das mulheres negras e o fortalecimento de políticas que reduzam as opressões e desvantagens. Nesta conversa com Carolina de Arruda Botelho, produtora do Confluentes, Naiara falou sobre sua experiência, sonhos e motivações.

Quem é você?
Eu sou Naiara Leite, tenho 36 anos. Sou militante do Movimento de Mulheres Negras e coordenadora executiva do Odara – Instituto da Mulher Negra.

Como você chegou aqui?
Entrei na militância das mulheres negras de 2004 para 2005, quando descobri que era uma mulher negra. Até aquele momento eu era uma jovem moradora do subúrbio ferroviário de Salvador, num bairro chamado Tubarão. É uma comunidade negra à beira-mar, que vive da pesca. Quando entrei na faculdade, para estudar Jornalismo, tive uma disciplina com uma professora negra que era, e é até hoje, ativista. Ela um dia me passou uma tarefa que foi escrever uma matéria sobre direitos humanos, algo de que eu nunca tinha escutado falar até ali. Nunca tinha ouvido falar em movimento de mulheres negras, nem acreditava que havia racismo no mundo. Eu não me entendia enquanto uma jovem negra. Então, quando fui fazer as entrevistas, me deparei com uma mulher negra, usando dreads, que na época coordenava o escritório da Fundação Cultural Palmares aqui na Bahia. Eu conhecia outras pessoas de dreads, mas não com aquela afirmação, não com aquela história. Falei sobre isso com a minha avó, comentei que tinha conhecido uma senhora muito diferente, e ela me disse assim: “Minha filha, mas nós somos pessoas negras, embora a gente fale muito pouco sobre isso.” E a partir daquele momento minha avó começou a falar muito mais sobre a trajetória dela, sobre sua vivência enquanto mulher negra. Foi ali que comecei a minha trajetória política.

E o que aconteceu depois?
A pílula da Matrix veio quando fui para a Fundação Palmares. Cheguei lá e entrei em uma outra atmosfera. Tudo mudou na minha vida, comecei a ver um conjunto de jovens mulheres negras muito parecidas comigo falando de um lugar muito forte sobre o que era ser negra, sobre as relações escravocratas, as relações desiguais de trabalho. Era um conteúdo ao qual eu nunca tive acesso antes. Fui estagiária dessa organização, em um programa da universidade, durante uns dois anos, e depois já criei um grupo de jovens negras. E minha trajetória seguiu no Movimento de Mulheres Negras. Costumo dizer que fui muito bem recebida pelas energias, pelos orixás, porque entrei diretamente no colo das mulheres negras. Dali entendi que terminaria a faculdade, me formei jornalista, mas que tinha um compromisso não só com a minha trajetória individual, mas com o conjunto de mulheres negras do meu território, da minha cidade, do meu estado. E dediquei todas as técnicas que aprendi durante o processo de graduação para fortalecer a ação política das mulheres negras de forma coletiva. Foi atuando como jornalista no Movimento de Mulheres Negras que aprendi a escrever, a falar sobre racismo, a olhar para as minhas subjetividades. Foi ali que afirmei ainda essa minha outra identidade, de lésbica, porque até então eu também vivenciava um processo de compreensão sobre o que eu sentia, mas também de muito medo, medo de como aquilo iria reverberar na minha vida. A chegada ao Movimento de Mulheres Negras me deu força para que eu me transformasse na mulher que eu sou, tanto do ponto de vista da racial quanto de orientação sexual. Isso também mudou a minha família, que hoje se compreende como uma família negra.

Como foi a sua chegada ao Odara?
A Valdecir [Nascimento, coordenadora executiva do Odara], que acompanhou meu processo de formação no movimento negro, idealizou o Odara e me convidou para coordenar o programa de comunicação da organização. Topei o desafio e entrei no Odara nesse momento de criação, de fundação, no momento que a gente ainda juntava os nossos recursos, onde a gente trabalhava para pagar o aluguel da sede. Nenhuma de nós tinha remuneração, mas acreditávamos muito naquilo, pois era um momento muito emblemático no Nordeste, com debates sobre o desenvolvimento econômico da região. Assim o Odara nasceu trazendo essa provocação de pensar um projeto político desenvolvimentista em que as mulheres tivessem lugar. Porque a gente não quer mais fazer bolsinha, fazer artesanato, a gente quer pensar política, estar num universidade, liderar uma empresa, liderar espaços políticos internacionais. Então o Odara surgiu com essa provocação, em 2010. Depois, em 2013, quando a gente decidiu estruturar a Rede de Mulheres Negras do Nordeste, foi outro momento de aprendizado para mim. Pois eu nunca tinha visto uma rede sendo concebida, um processo coletivo dessa dimensão acontecendo, que saia da Bahia e atravessava outros estados de uma região tão grande, tão difícil e tão complexa quanto o Nordeste.

De que forma você resumiria a atuação do Odara?
Hoje o Odara trabalha com a transformação da vida das mulheres negras, das meninas, jovens, adolescentes e das LGBTs negras. Acho que o Odara tem essa dimensão, a partir da formação, da sensibilização, da articulação, da transformação, de olhar os direitos, ou a ausência de direitos, de olhar como o racismo impera. Então, se eu fosse fazer uma fala bem resumida, diria que o trabalho do Odara tem uma função de transformar a vida das mulheres negras, de combater o racismo e de criar estratégias para uma sociedade onde seja possível que as mulheres negras vivam de maneira segura, sem violência e sem racismo.

O que motiva você a acordar todos os dias?
O que me faz acordar todos os dias é justamente o amor pelas mulheres negras. Eu acho que, da mesma forma que elas me acolheram e me amaram, desde minha avó e minha mãe, o que me faz acordar todos os dias é acreditar no amor pelas mulheres negras e acreditar, com isso, na possibilidade de construção de um mundo melhor para essas mulheres viverem. Isso me faz acordar cedo. E eu vou continuar acordando cedo até o último dia em que eu estiver por aqui.

Qual o seu sonho?
Meu sonho hoje é que a gente consiga de fato viver para ver uma sociedade livre, não uma sociedade livre pela metade, mas uma sociedade livre de verdade. E isso significa que todas as pessoas devem ser livres. Homens, mulheres, juventudes, idosas, indígenas, quilombolas, pessoas negras. Acho que esse é o meu grande sonho. Algumas pessoas podem achar impossível, mas eu acredito nas coisas que a gente vem construindo. Manter a ideia de sonho de liberdade é manter uma mensagem para quem chega, mensagem de que é possível construir outra coisa. O que a gente mais deseja é ser livre, a liberdade dos nossos corpos, das nossas existências, dos nossos pensamentos, do nosso jeito de ser, do nosso jeito de falar, do nosso jeito de fazer política, do nosso jeito de dançar, do nosso jeito de construir processos. Então o meu maior sonho é que nós possamos, enquanto pessoas negras, enquanto sociedade, viver uma ideia de liberdade real.

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